Reza a lenda que Oxum lava suas joias antes de lavar seus filhos. Pode até ser que Oxum tenha fama de vaidosa, mas todas as vezes que um Preto Velho me repetiu esse ditado, foi em tom de lição. As companhias aéreas claramente concordam. Mas não é isso que eu penso quando ouço a palavra “autocuidado”. Penso em mulheres brancas (antes que venham as acusações de racismo reverso, aviso: eu também sou branca) com máscaras faciais, uma manicure de um lado, um cabeleireiro atrás, muito provavelmente outra pessoa (quase sempre invisível, quase sempre mulher, e quase sempre negra) para cuidar da sua casa e olhar os seus filhos.
Outra imagem: jovens muito livres e muito felizes furando quarentena e indo a bares e festas a torto e a direito com a desculpa de “minha saúde mental”.
É um tema que me enerva a porto de eu não gostar de pensar sobre. Mas ultimamente tenho tentado elaborar meus pensamentos além disso. O gatilho foi um trabalho apresentado por alguns colegas em uma aula da faculdade. O trabalho em si não propôs nenhuma reflexão mais profunda/subversão dessa ideia, mas o tema deu o chute que eu precisava para refletir. Autocuidado. Cuidar de si mesma não devia ser um direito humano básico?
Começando do começo: o que exatamente configura “autocuidado”? Entre os meus colegas de turma, a ideia geral é de que o autocuidado é um tempo que se tira para se dedicar a si mesma, e é necessariamente agradável. Fui do contra. Ir ao dentista é, com uma margem grande de consenso social, uma experiência desagradável; mas consenso maior ainda é de que é importante para o bem-estar e saúde das pessoas. É autocuidado? Para mim, é.
A atividade proposta pelo grupo envolveu cada um compartilhar um ato de autocuidado que acha importante e pratica ou gostaria de praticar. Os campeões foram: banho, dormir e comer, nessa ordem. A maioria das pessoas deu sobrenomes; banho “demorado”, comer “um prato que eu gosto”. O meu foi só banho mesmo. Ninguém fala em autocuidado quando é a mãe solo puérpera sem rede de apoio; ninguém pensa nas pessoas em situação de rua que não têm nem banheiro para usar, que dirá um bom chuveiro para um banho demorado, que não sabem quando vão conseguir comer, quem dirá comer algo gostoso. A gente fica falando de perfumaria quando muita gente ainda não tem o básico.
Isso significa que nós, privilegiados de plantão, devemos deixar de nos cuidar, parar de tomar banho, só comer comida ruim? Claro que não. Mas a etiqueta do autocuidado, para mim, é só uma forma de criar um nicho de mercado específico para vender produtos. E o termo é tão amplo que engloba potencialmente todo e qualquer aspecto das nossas vidas. Em última instância, “autocuidado” é a justificativa perfeita para tudo.
E lá vou eu falando sobre gênero de novo
Não bastasse essa captura neoliberal da coisa, o autocuidado também me irrita por ser um nicho de mercado essencialmente voltado para mulheres. Não tem ninguém por aí mandando homem se cuidar, mesmo que eles não procurem serviços médicos e nem se dignem a lavar as próprias partes íntimas (essa história nunca fica velha). A verdade é que as mulheres estão ocupadas demais cuidando de todo mundo para cuidarem de si mesma; os homens não precisam se cuidar porque são muito bem cuidados. Quem cuida das mulheres?
Essa captura do desamparo que a gente sofre é a origem da indústria do autocuidado. Devia ser básico, mas virou luxo.
Lavar as próprias joias antes de banhar os filhos exige coragem, exige consciência da própria importância. Não é se cuidar para poder cuidar dos outros; é se cuidar porque somos importantes e merecemos ser priorizadas, em primeiro lugar, por nós mesmas. Não é egoísmo. E também não se resume a fazer as unhas uma vez por semana e se sentir paparicada. Enquanto tudo se resumir a pseudossoluções neoliberais, a gente continua onde está. Não tem meditação que compense o desgraçamento mental de viver a vida sob o capitalismo contemporâneo.
Autocuidado, para mim, é não viver em uma sociedade em que a gente precisa se esforçar o tempo todo para ter o privilégio do nosso próprio cuidado. Autocuidado, de verdade, é a revolução (e eu não estou dizendo que o autocuidado neoliberal é revolucionário); isso que a gente faz é, no máximo, cuidados paliativos.
Recomendação da semana
O Danilo Heitor criou uma nova publicação para compartilhar seus últimos momentos com a cachorrinha Preta, com quem dividiu os últimos 16 anos e que agora está partindo. Na primeira edição, ele compartilhou a história deles, e eu me acabei de chorar. Leiam por sua conta e risco.
Mais uma indicação da Segredos em Órbita, da Vanessa Guedes, o texto dessa semana sobre autoficção e autobiografia:
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